quarta-feira, 12 de dezembro de 2007


Visão de Clarice Lispector     

Clarice, veio de um mistério, partiu para outro.    

Ficamos sem saber a essência do mistério.    

Ou o mistério não era essencial,    

era Clarice viajando nele.    

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,    

onde a palavra parece encontrar    

sua razão de ser, e retratar o homem.    

O que Clarice disse, o que Clarice    

viveu por nós em forma de história    

em forma de sonho de história    

em forma de sonho de sonho de história    

(no meio havia uma barata    

ou um anjo?)    

não sabemos repetir nem inventar.    

São coisas, são jóias particulares de Clarice    

que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.    

Clarice não foi um lugar-comum,    

carteira de identidade, retrato.    

De Chirico a pintou? Pois sim.    

O mais puro retrato de Clarice    

só se pode encontrá-lo atrás da nuvem    

que o avião cortou, não se percebe mais.    

De Clarice guardamos gestos. Gestos,    

tentativas de Clarice sair de Clarice    

para ser igual a nós todos    

em cortesia, cuidados, providências.    

Clarice não saiu, mesmo sorrindo.    

Dentro dela    

o que havia de salões, escadarias,    

tetos fosforescentes, longas estepes,    

zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,    

formava um país, o país onde Clarice    

vivia, só e ardente, construindo fábulas.    

Não podíamos reter Clarice em nosso chão    

salpicado de compromissos. Os papéis,    

os cumprimentos falavam em agora,    

edições, possíveis coquetéis    

à beira do abismo.    

Levitando acima do abismo Clarice riscava    

um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.    

Fascinava-nos, apenas.    

Deixamos para compreendê-la mais tarde.    

Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice.              

Carlos Drummond de Andrade.


aah, Clarice, quanto de você há em mim...

e quanto de mim, certamente, existiu em você. L.C

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei o texto, lindo. Acho que deveria divulgar mais o seu blog.